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Voto, juramento e a palavra precipitada

Em Números 30, a Torá aborda a questão de votos e juramentos a Deus. Esse é um tema muito importante, porém, pouco compreendi...

Voto, juramento e a palavra precipitada
Voto, juramento e a palavra precipitada (Foto: Reprodução)

Em Números 30, a Torá aborda a questão de votos e juramentos a Deus. Esse é um tema muito importante, porém, pouco compreendido. Há três palavras no original para se referir a votos e juramentos que nos permitem estabelecer uma abordagem breve, mas fundamental, entre elas.

O voto bem como o juramento são ordenanças dadas por Deus a Moisés e, portanto, instrumentos legítimos no relacionamento para com Deus quando executados dentro do contexto apropriado. Vemos isso ao longo das Escrituras, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Por exemplo, em Apocalipse 10:6, um anjo estende a mão direita para o céu e jura por aquele que vive para todo sempre.

O juramento é algo seríssimo por tomar Deus por testemunha. Sua simples invocação era capaz de resolver situações de disputas, como em Êxodo 22:11, ou de absolver o inocente e expor o culpado, como em Números 5:19-22. Vemos o apóstolo Paulo (Rav Shaul) fazendo isso em 2Co. 1:23, tomando Deus por testemunha para se justificar perante os coríntios.

Assim como o juramento, o voto está presente por todas as Escrituras e é parte de uma atitude voluntária e decisiva de quem vota para com Deus. Equivale a prometer algo, a cumprir com determinada obrigação autoimposta por quem vota. O Antigo Testamento está repleto de votos que vão de pessoas simples até reis. No Novo Testamento, encontramos o mesmo Paulo cumprindo um voto em Cencreia, onde raspou a cabeça (At. 18:18). Certamente, esse era um voto de nazireu, detalhado e preconizado pela Torá no capítulo 6 de Números.

Obrigação para com os céus

A Torá inclui mais uma palavra na mesma categoria dos votos e juramentos que é mivtá. Ela é traduzida nas versões em português por “declaração” ou “palavra precipitada”. É uma palavra raríssima e aparece apenas aqui em toda a Bíblia. A ideia é de exprimir uma obrigação para com Deus pela palavra falada. Enquanto um voto pode ser feito de modo silencioso, a mivtá pressupõe que essa declaração saia dos lábios de quem vota, podendo haver inclusive testemunhas.

A passagem de Números assume que a fala, uma vez externalizada, cria uma obrigação automática que alcança as cortes celestiais. A murmuração dos lábios que, muitas vezes é feita sob forte tensão, provação ou períodos de tribulação, é ouvida pelos céus imediatamente que, por sua vez, cobrará o que foi prometido. Daí a tradução possível de “palavra precipitada”, pois pode não haver reflexão apropriada no que saiu dos lábios de quem votou.

Refletindo ou não na promessa que se fez, a pessoa que a exprimiu fica obrigada diante de Deus de cumprir o que disse. Em relação a esse mesmo aspecto do voto, o Pregador exorta a quem vota que não atrase seu cumprimento e que é melhor não fazer voto algum do que fazer e não cumprir (Ec. 5:4-5).

De alma amarrada

O voto, o juramento e a mivtá possuem o mesmo peso e são capazes de prender uma pessoa pelo resto da vida. De fato, o verbo para obrigar em relação ao voto tem seu original na palavra asar — amarrar, confinar, aprisionar. No texto original, a referência para quem faz um voto é de literalmente “amarrar a alma”.

Longe de ser uma mera figura de linguagem, isso explica por que muitas pessoas têm suas vidas amarradas em determinado ponto, além do qual são incapazes de progredir. Estão paralisadas, como presas por cordas invisíveis em determinadas áreas, reclusas em prisões espirituais ou condenadas a ciclos viciosos. O motivo por trás pode estar em votos não cumpridos ou esquecidos. Nunca é tarde para cumprir aquilo que se prometeu a Deus, especialmente se foi uma mivtá, prometida apressadamente e sem reflexo nas consequências.

“Sim, sim e não, não”

A mivtá nos relembra que uma palavra falada não é mero discurso ou um som qualquer. É algo que remete a aliança com Deus e Ele não esquece de nada do que lhe dissemos e prometemos. É imperativo relembrar, nesse contexto, que vida e morte estão no poder da língua (Pv. 18:21), incluindo a vida e a morte, física ou espiritual, para o dono da própria língua.

Quando Yeshua ensinou aos discípulos sobre votos e juramentos (Mt. 5:33-37), fez uma referência clara à mivtá. De modo algum, Ele altera as ordenanças referentes a eles na Torá, mas, na verdade, usa um artifício muito conhecido entre os rabinos de seu tempo que consistia em “erguer cercas ao redor da Torá”, a fim de se proteger os mandamentos.

Ele combate uma prática crônica de seu tempo, inclusive estimulada por alguns rabinos, de se jurar por qualquer coisa. A maneira apressada de se fazer e a motivação nem sempre eram legítimas. O juramento feito a Deus é algo estabelecido na Torá e Yeshua aqui reforça sua gravidade, advertindo que ninguém os faça sem a devida reflexão e em casos de extrema seriedade. Essa foi uma exortação fundamental, pois, em sua época, o juramento havia se tornado em algo corriqueiro, feito sem o devido temor a Deus.

Ele finaliza com o famoso “Seja o vosso sim, sim, e o vosso não, não!”. Em outras palavras, valem mais os atos de retidão moral e a prática de alguém cujo caráter irrepreensível respaldem palavras diretas e sinceras. Alguém que assim age tem a palavra confiável e agrada ao Pai. Tal pessoa não precisa fazer juramentos impensadamente com o propósito de ganhar credibilidade perante os homens, tampouco perante Deus que conhece todos os corações.

“Laço é para o homem apropriar-se do que é santo, e só refletir depois de feitos os votos.” (Provérbios 20:25)  

Para saber mais, acesse https://www.aoliveiranatural.com.br/2023/06/21/o-poder-de-um-voto/

 

Getúlio Cidade é escritor, tradutor e hebraísta, autor de A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo e do blog www.aoliveiranatural.com.br.

* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

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